Vale do Ribeira

Defensoria obtém decisão que reconhece direito de comunidade quilombola e invalida sobreposição de parque estadual

Em sentença inédita, Justiça supera a tese da dupla afetação e afasta incompatibilidade entre manutenção da comunidade e conservação ambiental

Publicado em 16 de Fevereiro de 2024 às 12:34 | Atualizado em 16 de Fevereiro de 2024 às 12:36

Juíza eterminou a apresentação do cronograma de execução e prazo para início da obra da estrada de acesso ao quilombo l Foto: Júlio César Almeida / ISA

Juíza eterminou a apresentação do cronograma de execução e prazo para início da obra da estrada de acesso ao quilombo l Foto: Júlio César Almeida / ISA

A Defensoria Pública de SP obteve sentença judicial em favor da comunidade quilombola de Bombas, situada na região do Vale do Ribeira, a sudoeste do estado, no município de Iporanga. Após ação civil pública proposta pela Defensoria em face da Fundação Instituto de Terras de SP (Itesp), da Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado (Fundação Florestal) e do Estado de SP, a Justiça decidiu pela invalidade da sobreposição do Parque Estadual Turístico do Alto do Ribeira (Petar) ao território do Quilombo Bombas e pela devolução à comunidade do Sistema Areias, uma área histórica e sagrada para os quilombolas. 

O início do caso remete ao ano de 2002, quando o Itesp constatou que o território quilombola de Bombas estava localizado em terras inseridas no Petar, alegando que 90% das áreas são de titulação particular e que 10% das áreas são terras devolutas estaduais. Agora, a Justiça acolheu o argumento da Defensoria, garantindo a titulação do território, incluindo o Sistema Areias. 

“Não há precedente no Judiciário brasileiro, inclusive no âmbito da Justiça Federal, nesse sentido. Portanto, a decisão abrirá novos caminhos para o tratamento da temática que envolve conflito histórico ainda não resolvido, superando-se a tese da dupla afetação em favor da garantia da plena autonomia dos territórios quilombolas”, comentou o defensor público Andrew Toshio Hayama, que atua na unidade da Defensoria em Registro, após o proferimento da sentença. Ele ressaltou que antes do ajuizamento da ação foram esgotadas, sem sucesso, as tentativas de resolução extrajudicial. 

A dupla afetação é um regime jurídico especial que visa a resolução de conflitos causados pela sobreposição entre unidades de conservação e terras indígenas ou quilombolas, por meio de um sistema de cogestão do território. 

Na ação, ajuizada em 2014, o defensor argumentou: "Isolamento, hoje, não significa, como outrora, refúgio e proteção para os quilombolas, mas abandono e invisibilidade. A palavra de ordem é reconhecimento, pois há toda uma história a resgatar e dignidade a reafirmar". Ele ressaltou ainda que já foi comprovado, inclusive em estudo feito por encomenda da própria Fundação Florestal, que nunca sucederam condutas de degradação e destruição ambiental por parte da comunidade. "Para além das políticas de compensação e da garantia do mínimo existencial, desperta-se para horizonte mais generoso de emancipação plena e de vida em abundância simbolizado pelo termo etnodesenvolvimento, contemplando atividades como o turismo comunitário e de base, o cooperativismo, a agricultura de subsistência e em pequena escala, o extrativismo de baixo impacto ambiental, a gestão sustentável do território, a soberania no uso do conhecimento tradicional etc.", destacou Andrew Toshio. 

Invalidade de sobreposição 

 Na sentença, a juíza Hallana Duarte Miranda, titular da comarca de Eldorado, reconheceu a invalidade material do Decreto 32.238/1958 (que cria o Petar) na parte em que se sobrepõe ao território quilombola (incluindo o Sistema Areias) por incompatibilidade com a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), declarando a nulidade da afetação daquele território à Unidade de Conservação. 

 “A tese da dupla afetação não tem aplicação em relação aos quilombolas quanto estiverem com unidade de conservação sobreposta ao seu território. Ou seja, não é o território quilombola que está sobreposto e sim a Unidade, que veio depois, ou seja, que é a que necessita da análise de desintrusão”, entendeu a magistrado. 

 A juíza determinou que até o trânsito em julgado do processo, a gestão do território deve ser dividida entre a comunidade e a Fundação Florestal, observando a necessidade de consulta prévia (segundo protocolos que deverão ser estabelecidos pela própria comunidade, com auxílio, inclusive, de instituições que assim o façam), a inclusão no plano de manejo, instrumentos de gestão ambiental e observância, pelos réus, da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (Decreto nº 11.786/2023). 

Hallana Miranda ordenou ainda a conclusão definitiva pelo Itesp da titulação do quilombo em prazo razoável, sob pena de multa, promovendo a regularização fundiária necessária. Os estudos técnicos para titulação foram concluídos no ano de 2002 e segue até hoje sem ações do Itesp. A magistrada ainda determinou a apresentação do cronograma de execução e prazo para início da obra da estrada de acesso ao quilombo, que já fora determinada em decisão liminar anterior, proferida em 2015. 

(Com informações do ISA – Instituto Socioambiental)